01
jul
08

Aira traz a crise para suas histórias

 

As Noites de Flores é um dos três livros de César Aira traduzidos para o português e publicados no Brasil. Num texto curto de 2004, o escritor argentino conta a história de um casal de meia idade que, devido à crise econômica do país, passou a entregar pizzas a pé no tradicional bairro de Flores, onde morava.

A narrativa é inusitada. Na primeira metade da obra, Aira apresenta Aldo e Rosa Peyró que para fugirem da rotina monótona que a idade lhes oferecia e a fim de aumentarem sua renda, empregaram-se num serviço comum aos jovens da classe média argentina, o delivery. O fato de fazerem a entrega das pizzas a pé lhes rendiam muitas histórias e conversas, além de permitir que eles fizessem exercícios regularmente, o que era recomendável para a saúde de ambos.

Nessa primeira metade do livro, Aira ao descrever tanto física quanto psicologicamente o casal, confere a eles um vigor e uma simpatia que encanta e aproxima o leitor. Rosa, carinhosamente chamada por Aldo de Rosita, andava sempre a esquerda do marido, pois o ouvido direito dele não funcionava tão bem. Ela também sempre ficava do lado de dentro da calçada, um gesto cavalheiro do marido que somado à necessidade da esposa de se posicionar à esquerda dele para poderem conversar, fazia com que tivessem de mudar diversas vezes de calçada, ou mesmo, percorrerem um trajeto maior.

O trabalho no Pizza Show trazia ao casal um sentimento de juventude. Além do convívio com os jovens, o escuro da noite e o domínio que tinham sobre as ruas de Flores faziam com que o casal se sentisse como adolescentes cheios de liberdade. Junto a isso se ligava a responsabilidade que a eles era conferida pelo fato de terem mais idade. Era Aldo e Rosa, por exemplo, que entregavam as pizzas quando o Instituto Sagrado das freiras fazia pedidos.

As andanças noturnas de Aldo e Rosita são marcadas pelo noticiado seqüestro seguido de assassinato de Jonathan, um jovem motoboy também de classe média. Além disso, constantemente referiam-se à crise argentina, a qual era, sem dúvida, a principal causa do crime para o casal. Pelo caminho, muitas vezes, eles se deparavam com Nardo, um ser de baixíssima estatura que tinha asas de morcego e bico de papagaio, a primeira das muitas revelações delirantes do escritor.

Aira, depois de muito descrever o casal e convencer o leitor a respeito da personalidade de ambos, surpreende ao se referir a Rosita como uma velha cega. O leitor depara-se com uma confusa sensação de não estar atento aos detalhes. Entretanto, esse é um dos diversos artifícios explorados pelo escritor argentino. A partir de então, o fio condutor da narrativa se dispersa e o autor insere na história personagens relacionados à investigação do assassinato de Jonathan, como o famoso procurador do Ministério Público Zenón Mamaní Mamaní. É nesse momento que, definitivamente, a história toma um outro rumo. Aldo e Rosa são descartados e o desenrolar do enredo desloca-se para a resolução do crime.

O casal, agora desconhecido do leitor, só aparece novamente quando o seqüestro e o assassinato do jovem motoboy começam a ser esclarecidos. De repente, Aldo e Rosita não são mais os mesmos. O simpático casal desaparece. Diversas máscaras caem. O procurador resolve o caso. O leitor se surpreende. O escritor mostra o quanto é imprevisível. E, Flores perde a simpatia e a graça, tornando-se um cenário desconexo.

01
jul
08

Negros da gema


Funk carioca ou cumbia argentina. Em Coisa de Negros, as histórias se confundem num emaranhado narrado por Washington Cucurto. Os costumes e maneiras de enxergar a realidade foram traduzidos do espanhol original para o português por André Pereira da Costa. Bom seria se todo o sentido da narrativa fosse preservado nos minúsculos detalhes explorados pelo autor nesta viagem ludibriante pelos becos e subúrbios da bela Buenos Aires. As moças do Samber são musas do imperfeito, dançam a cumbia no ritmo alucinantemente sensual e pervertido. O machismo é predominante em todas as cenas, com o posicionamento autoritário e dominante sobre as fêmeas, que requebram e rebolam para todos os lados, até atingir o êxtase embriagante das delicias do prazer.


A história não é apenas a música tropical da América Latina. Muito mais que isso, os silenciados podem ser ouvidos, ainda que não façam questão de aparecer. A abordagem sociológica e cultural das regiões do Samber é fracamente explorada em Coisa de Negros, que opta pelo naturalismo excessivo, que muitas vezes, beira o cômico. A maneira como Cucurto retrata o subúrbio argentino cria a ilusão de que é o submundo, que foge da incompreensão humana sobre os costumes e formas de relacionamento. O sexo é tratado como algo promíscuo e degradante, como se os personagens fossem animais no cio. No livro, o autor não se utiliza do pudor para descrever as artimanhas intimistas do casal, sempre movidos pelo prazer e pelo instinto.

 
Não por descuido de Washington Cucurto, mas principalmente pela tradução brasileira, o texto soa impróprio, por mostrar uma imagem desconexa com a realidade. Na verdade, o autor argentino falou sim das relações existentes do Samber, mas sem deixar escorregar por entre as mãos a intenção de retratar uma cena social, costumes e hábitos impróprios para a maioria das civilizações ocidentais, mas absolutamente cabível para os moradores da região. O leitor brasileiro poderá se sentir como num baile de funk carioca, misturado com as cachorronas e tchutchucas, enquanto Coisa de Negros vai muito além da análise simplista e da descrição banal dos fatos.


Para os entendedores do espanhol, vale a dica de uma entrevista com Cucurto na Universidade de Nova York (em duas partes):

 

 

25
jun
08

“Mais esperto do que eles”

Durante o regime militar brasileiro, o poeta Ferreira Gullar atuava no CPC, era um dos idealizadores do Grupo Opinião e fazia de sua literatura um instrumento para a luta contra a ditadura. Ele se considera um dos líderes da intelectualidade nesse embate e afirma ter sido um elemento perigoso para os militares. 

Ana: Como foi sua participação no Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE?
Ferreira Gullar: A partir de 1962, fui eleito presidente do Centro Popular de Cultura da UNE, e fiquei na presidência até o Golpe de 1° de abril de 64. A nossa atuação era político-cultural. Atuávamos fazendo teatro, poesia, exposições e espetáculos de música popular. Por um lado, tínhamos o objetivo de promover a cultura popular brasileira e, ao mesmo tempo, conscientizar as pessoas das questões políticas e sociais que envolviam o país.
Ana: Em 1964, o ensaio “Cultura posta em questão” foi queimado pelos militares. O senhor pode contar como foi esse episódio?
Gullar: No dia 31 de março, fomos para sede da UNE, também sede do CPC, e convocamos a intelectualidade e todos os artistas para irem para lá a fim de nos manifestarmos contra o golpe. Então, estava lá gente de tudo quanto é lugar e também um grupo chamado Comando dos Trabalhadores Intelectuais, que tinha se reunido com líderes políticos e com militares. Eles trouxeram uma mensagem de que estava tudo bem e de que o governo não iria cair. Era uma informação errada. Otimista demais. Na verdade, o golpe continuou. Naquela noite do dia 31, o comandante do II Exército de São Paulo, o general Amauri Kruel, também aderiu ao golpe e isso consumou a derrubada do Jango. No dia seguinte, eu voltei para UNE. Ela estava sendo atacada por uma série de militantes de direita, que apedrejaram e jogaram coquetel molotov no prédio, que se incendiou. O golpe estava consumado.
Ana: O que foi Grupo Opinião fundado em 64?
Gullar: O Grupo Opinião foi formado pelos mesmos membros do CPC. O Vianninha, a Thereza Aragão, o Paulo Pontes, o Pichin Pla, o Armando Costa, Januário de Oliveira e eu decidimos criar um grupo teatral com o cuidado de não parecer que fosse o mesmo pessoal do CPC, a fim de que os militares não nos prendesse e não impedisse seu funcionamento. Então, em dezembro de 1964, nós estreamos no teatro da Rua Siqueira Campos, no Rio de Janeiro, que, em seguida, passou a se chamar Teatro Opinião. O Show Opinião, organizado por nós, escrito por Vianninha, Paulo Pontes e Armando Costa e com a participação de Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale, representando e cantando, foi o primeiro espetáculo de protesto contra a ditadura. Ele iniciou toda uma luta da classe teatral contra a ditadura. Um espetáculo musical bonito e bem-humorado, que era, de fato, a reafirmação das nossas posições em face da ditadura.
Ana: Qual leitura o senhor faz do Grupo Opinião hoje?
Gullar: O grupo foi a primeira manifestação pública artística contra o regime e teve um fator importante, pois renovou o teatro musical brasileiro. A partir disso, criou-se um tipo de espetáculo musical que ao mesmo tempo tinha a fala e música e, até hoje, espetáculos são feitos com essas características. O Grupo Opinião montou o espetáculo “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, escrito pelo Vianninha e por mim, que, até hoje, é considerado uma obra prima do teatro moderno brasileiro e que obteve, na época, todos os prêmios do teatro. Depois, o Show Opinião montou “Dr. Getúlio, sua vida, sua glória”, um espetáculo muito interessante escrito por Dias Gomes e por mim. Era um tipo de espetáculo teatral que imitava desfile de escola de samba.
Ana: Em relação à peça “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, o senhor concorda com a idéia de que a arte é mais expressiva quanto mais ela é colocada como instrumento de divulgação de conteúdo político?
Gullar: Aquela peça foi escrita no momento em que a ditadura tinha iniciado uma campanha feroz contra o teatro e estava proibindo tudo quanto é peça. Então, nós do Grupo chegamos à conclusão de que a melhor maneira de vencer a censura seria escrever uma peça que fosse muito bonita e engraçada e que fosse, ao mesmo tempo, um grande espetáculo teatral, de grande qualidade literária, tanto é que a peça é escrita em versos. Isso fez com que a censura da ditadura não pudesse fazer nada contra a peça, porque ela era uma obra-prima de literatura teatral. E, essa foi decisão deliberada, de fazer uma peça que fosse política, mas que não tivesse radicalismo, não fosse uma coisa feroz, pois isso só facilitava a ação da ditadura. É preciso ser ágil, ser inteligente para vencer a ditadura. Não pode tentar bater de peito com uma ditadura que tem armas, que tem poder. Você tem que ser esperto, mais esperto do que eles.
Ana: O senhor acha que a peça “Getúlio sua vida, sua glória” foi motivo imediato da sua prisão em 68?
Gullar: Não, não. Minha prisão foi decorrente da minha atividade política. Eu era membro do Comitê Estadual do Partido e eu era um dos líderes da intelectualidade na luta contra a ditadura. Eu participava das assembléias e orientava, junto com o Vianninha e com outros, como se devia desenvolver a luta. Então, eu era para a ditadura um elemento perigoso e é natural que eles tentassem me prender.
Ana: Seu poema “Agosto de 1964” possui o seguinte verso “a poesia responde a inquérito policial militar”. O senhor chegou a assinar algum inquérito policial militar?
Gullar: Não. Eu diria que a poesia responde a inquérito, porque nós, todos os intelectuais que lutavam contra a ditadura, fomos processados pelo exército que criou esse tipo de inquérito. Então, éramos chamados a depor e éramos interrogados durante horas e horas. Por isso usei esse verso, aludindo a esses casos de perseguição da intelectualidade.
Ana: Como foi seu ano de 1968?
Gullar: Estava na minha vida normal. Eu era jornalista do Estadão – Estado de S. Paulo. À noite, depois do jornal, eu ia para o teatro participar das reuniões e atividades políticas que eu desenvolvia. Mas era tudo legal, não era nada clandestino. Não era proibido atuar, opinar, fazer ou se reunir. Porém, eles achavam que isso era uma atitude subversiva, porque, em ditadura, ninguém pode ter opinião contrária ao governo. Se tiver, vai terminar preso ou mesmo desaparecido. Então, por isso fizeram. Não prenderam só a mim. No dia 13 de dezembro de 68, eles prenderam centenas de pessoas no país inteiro, todas estavam lutando contra a ditadura.

Dê uma olhada numa outra entrevista bacana do poeta.

24
jun
08

Para quem adora Bergman

Bom, essa não é de literatura, mas como coisa boa é sempre bom saber, lá vai!

Nessa última semana de junho acontece, na ilha de Farö, na Suécia, a Semana Bergman, para os amantes de cinema e de Bergman.

Dois filmes foram escolhidos para serem projetados na ilha que o cineasta escolheu para ser o seu cantinho, onde, sossegado, gravou seis longas durante sua vida.

A semana, promovida pelo Svensk Filminstituet, o Instituto Sueco de Cinema, acontece há cinco anos, sempre nos lugares em que o próprio Bergman costumava filmar e os filmes são apssados em uma salinha pequena, de cadeiras de madeira, para críticos de cinema de alguns países.

A madrinha deste ano, a cineasta Margarethe Von Trotta escolheu O Sétimo Selo por considerar que este foi o filme decisivo na escolha da sua profissão, enquanto a escolha de Joan Troel foi Somalek, o primeiro dos filmes de verão de Bergman.

A Semana Bergman acontece de 26 a 30 de junho. Uma pena que o público não pode participar, mas basta saber que, dentro de toda sua genialidade, Bergman não será esquecido pelq crítica nem pelos amantes de cinema!

25
maio
08

Reviravolta da eterna ditadura

O dia 1º de abril de 1964 seria feriado nacional se o regime não tivesse durado mais de vinte anos e tivesse chegado ao fim pela própria fadiga dos militares. O golpe foi apoiado por muitas e muitas pessoas. Todos acreditavam ser a grande salvação do futuro brasileiro. Pouquíssimos cidadãos se deram conta de que se tratava de uma ditadura forte, que a censura e a violência apareceriam a galope, era só uma questão de tempo.

Carlos Heitor Cony. Nome de um destes cidadãos que não se deixou enganar pela mentalidade alienada da maioria da sociedade brasileira da época. “Eu não entrei nesta. Chamava o ano de 1964 de revolução de caranguejos porque eu achei que era uma violência. Muitos políticos que embarcaram no golpe, quando viram que os militares iam ficar no poder por muito tempo, começaram a mudar de lado”. O favoritismo daqueles que instauraram a ditadura no país era tanta que, se houvesse um plebiscito, cerca de 90% estariam a favor do golpe. Para Cony, apenas em 1968, com o endurecimento do regime e a instauração do AI-5, é que houve uma consciência de que era preciso fazer alguma coisa para derrubar os militares. “Mas, mesmo assim, não fizeram nada, porque a ditadura durou até 85, mais de vinte anos”.

Apesar de muitos protestos e passeatas, muito pouco havia no sentido de combater o regime de frente. As crônicas políticas que Cony publicava nos jornais, antes da censura de 1968, denunciavam o governo, acusando os militares de estabelecerem no país um governo autoritário, em que se excluía a participação popular. Até mesmo Luís Fernando Veríssimo, muito jovem na época, disse que a única participação política é que ele lia as crônicas do Cony e ficava satisfeito, com raiva dos militares. Os seqüestros de embaixadores e algumas tentativas de luta armada se caracterizavam como movimentos isolados, sem o apoio da população.

“Eu era jornalista de amenidades, falava sobre cinema, teatro, balé, mulher, música popular, futebol. Eu reclamei e combati os militares pela falta de liberdade, mas não tive apoio”. Carlos Heitor Cony foi o único jornalista processado e preso sob ordens do Ministro da Guerra Costa e Silva, na época, o maior poder político do país. As outras pessoas que trabalhavam nos jornais e na imprensa foram censurados para deixarem o trabalho, mas o caso de Cony é específico. Foram três meses na cadeia. “Meus amigos mudavam de esquina pra não falar comigo, com medo de serem contaminados. Eu não estava defendendo uma posição política, eu estava defendendo uma questão humana. Eu estava defendendo aquilo que eu chamaria de dignidade humana diante da força”. O livro que reúne algumas das crônicas de Cony foi publicado em 1964, com o título “O Ato e o Fato”. Para o autor, o ato era a ditadura e o fato era que, a partir daquele momento, o Brasil deixava de ser um país livre para se tornar um país escravo.

A geração da ditadura ficou arrebentada porque ficou sem liberdade. Em vez de se preocupar com as questões nacionais, muitos se interessavam por fazer música ou teatro de protesto, mas que não traria nenhuma solução. Não adiantaria cantar “Liberdade, liberdade”, sem tomar uma ação política. “Ainda sinto raiva. Estava tão na cara que era uma ditadura e, como é que o pessoal não percebeu isto? Os jornalistas e artistas ficaram com o rabinho entre as pernas até 68, que foi quando perceberam que quem mandava no Brasil eram os militares e resolveram mudar de lado”. Deixando de lado as questões políticas e sociais do país naquela época, o que não sai da cabeça são as imagens e as sensações do período. Cony esbravejou contra o regime militar de 1964 a 1985 e hoje, traz consigo a lembrança de seis prisões e da falta de percepção da sociedade brasileira diante do quadro de repressão que se instalava no país.

22
maio
08

E por falar em América Latina…

Este mês a editora Duetto lançou mais um de seus cadernos de literatura, um panorama para quem quer conhecer mais sobre a literatura de um país e seus escritores, antigos e recentes. Só que dessa vez foi a América Latina, com todas as suas peculiaridades e genialidades que ganhou forma na nova edição. Vale a pena saber um pouco mais sobre Cortázar e seu realismo fantástico, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Roberto Bolaño e Jose Martí, um poeta cubano. Ah! E dá para os atrasadinhos de plantão comprarem seus exemplares, mesmo que já tenham sido recolhidos… É só entrar no site e pedir, pelo mesmo preço da banca! Para dar uma espiadinha no conteúdo É só clicar no link abaixo

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16
maio
08

Luta e maravilhamento em Cortázar

 

A vida de Julio Florencio Cortázar teve um começo, diga-se, inusitado. Filho de pais argentinos, ele nasceu na embaixada do país na Bélgica, onde a família estava morando por conta de trabalhos diplomáticos do pai, Julio Cortázar. A mãe, Maria Herminia Descotte era dona-de-casa e foi a maior incentivadora do filho para que ele torna-se escritor.

Tipo alto, esguio, os cabelos desgrenhados, quase despenteados, olhos castanhos de um olhar penetrante; firme, mas distante, como se quisesse esconder algo. O sorriso era tímido, talvez em razão da infância nada fácil. Desde pequeno sofreu provações. Foi abandonado pelo pai, teve que vencer as inúmeras doenças a que foi acometido, mudou de país por não concordar com o regime peronista na Argentina… E venceu todas. Teve a vida que quis e a que não podia imaginar.

A infância pobre e o fato de estar sempre doente levaram Julio a ler muito, livros escolhidos por sua mãe. Apaixonou-se por Julio Verne logo de cara; recebeu grande influência de Edgar Allan Poe, de quem foi o maior tradutor. Quando morou em Barcelona, encantou-se com o Parque Güell, idealizado por Antoni Gaudí, tendo-o como fonte de inspiração. Como ele mesmo contava, “pase mi infância em uma bruma de duendes, de elfos, com um sentido del espacio y del tiempo diferente al de los demás”.

Cortázar foi o precursor de um tipo de literatura que ficou conhecido como realismo fantástico, por tratar o texto com maravilhamento e fantasia. O autor relatou, certa vez, que “desde pequeño, me fascino la noción de monstruo, la idea de los animales mitológicos: uma cabeza de león, alas de áquila y plumas de pato, porque eso naturalmente provoca la indiferencia general de la gente . Pero me fascinaba porque me di cuenta de que eso se podia extrapolar a operaciones mentales, a conductas. Desde que yo empece a escribir, la noción de lúdico estuvo profundamente imbricada, confundida com la noción de literatura. Para mi, uma literatura sin elementos lúdicos era uma literatura aburrida, la literatura que no leo, la literatura pesada, el realismo socialista”. E ele tem inúmeros livros, sendo mais de 50 entre romances, cartas, livros sobre teatro, poesia, e até, tardiamente, sobre política.

Comunista que era, não concordava com o governo de Perón, na Argentina, mudando-se para Paris em 1951, a pátria que escolheu para viver e morrer. De fato, Cortázar nunca tinha se interessado por política. Mas, ao visitar Cuba, foi tomado de assalto pelos movimentos contra a ditadura que aconteciam tanto na América Latina e sua literatura foi marcada por esse movimento. Segundo ele, “la revolución cubana, por analogía, me mostró entonces y de una manera muy cruel y que me dolió mucho, el gran vacío político que había en mí, mi inutilidad política. Desde ese día traté de documentarme, traté de entender, de leer: el proceso se fue haciendo paulatinamente y a veces de una manera casi inconsciente. los temas en donde había implicaciones de tipo político o ideológico más que político, se fueron metiendo en mi literatura. Ése es un proceso que se puede ir apreciando a lo largo de los años.”.

Mas Cortázar nunca foi militante, apenas colocou no papel todo o sentimento que tinha em relação à América Latina, em geral. Ele descobriu sua consciência política e o interesse humanístico a partir da preocupação e o interesse pelo destino do próximo.

Nas palavras do escritor, “comprendí que el socialismo, que hasta entonces me había parecido uma corriente histórica, acetable e incluso necesaria, era la única corriente de los tempos modernos que se basaba em el hecho histórico esencial, em el ethos tan elemental como ignorado por lãs sociedades en que me tocaba vivir, em el inconcebiblemente difícil y simple principio de que la humanidad empezará verdaderamente a merecer su nombre el dia que haya cesado la explotación del hombre por el hombre (…) Desde el momento em que tomé conciencia del hecho humano esencial, esa búsqueda representa mi compromiso y mi deber”. De fato, a revolução cubana nunca mais tiraria o furor com escrevia sobre isso, mas sem perder o foco da sua literatura. De acordo com Cortázar, era uma literatura de compromisso, e não comprometida.

Durante uma boa parte da carreira, não conseguiu distinguir política e literatura, produzindo muitos livros a respeito desse assunto. Dentre eles, o mais político de todos é “El libro de Manuel”, em que há uma síntese das buscas estéticas e do interesse pelos movimentos revolucionários daqueles anos, mas que ainda assim, conserva toda a fantasia e o frescor que fizeram de Cortázar um escritor único, incomparável. Um homem que escrevia com humor, por acreditar que assim, os temas ásperos das ditaduras latino-americanas seriam mais facilmente digeridos pelos leitores. Essa era a sua vontade. De um mundo mais justo, mais humano, mais igual.

Em 12 de fevereiro de 1984, no entanto, a pena cessou. Julio Cortázar faleceu por causa da leucemia, em Paris. E a literatura ficou órfã de um dos seus maiores expoentes.

08
maio
08

Uma briga antiga…

“DO ‘INDEPENDENT’ – Por que Mario Vargas Llosa socou Gabriel García Márquez, seu rival pelo título de mais importante romancista latino-americano do século 20, em um cinema mexicano, em 1976, dando início a uma das mais longas brigas na história das letras contemporâneas?

Os dois gigantes do romance moderno, que um dia foram grandes amigos, não se falam desde o dia em que o escritor peruano aplicou um gancho de direita contra o olho esquerdo do escritor colombiano, há três décadas. Nenhum dos dois revelou os motivos para a desavença, se bem que ambos tenham deixado escapar que se tratava de ‘algo pessoal’.

Ao longo dos anos, não faltaram especulações sobre a causa do desentendimento original. ‘Uma suspeita que circula amplamente é a de que a briga tenha sido causada por diferenças de opinião política’, postulava recentemente um blog latino-americano.

É verdade que García Márquez foi e continua a ser esquerdista. Vargas Llosa, no entanto, abandonou o amor juvenil por Fidel Castro e disputou sem sucesso a Presidência do Peru, como candidato de direita. Embora suas opiniões políticas tenham divergido amplamente, não se acredita que tenha sido essa a causa da briga.

Outros observadores especularam que ciúmes profissionais eram a causa do murro que deflagrou a discórdia. Embora seja considerado criador, ao lado de García Márquez, do realismo mágico, os trabalhos de Vargas Llosa não têm estatura comparável aos do rival. ‘Cem Anos de Solidão’ é considerado um dos clássicos definitivos da literatura do século 20.

De acordo com uma nova biografia de García Márquez, ‘The Journey to the Seed’ [a jornada para a semente], de Dasso Saldivar, os dois brigaram por causa de uma mulher. E embora García Márquez já tenha 80 anos, e Vargas Llosa tenha chegado aos 70, a rivalidade entre eles não diminuiu.

No mês passado, o jornal inglês ‘The Guardian’ informou que Vargas Llosa havia escrito um prefácio para uma edição comemorativa de ‘Cem Anos de Solidão’ que será lançada para celebrar o 80º aniversário do autor, o 40º aniversário da publicação do livro e o 25º aniversário de sua premiação com o Nobel de literatura.

A agente literária de García Márquez, Carmen Barcells, começou imediatamente a negar a história. A edição especial incluirá o excerto de um ensaio elogioso de Vargas Llosa sobre o romance, escrito antes que os dois se desentendessem.

Isso ainda assim revela que o tempo serviu para abrandar a disputa, ao menos parcialmente. Desde que o ensaio foi publicado, em 1971 (em edição que se esgotou rapidamente), Vargas Llosa se recusou a permitir que fosse reimpresso, a despeito da grande demanda e da existência de pelo menos uma edição pirata. No ano passado, decidiu voltar atrás, e permitiu que o texto fosse incluído nas suas obras completas, publicadas em 2006, mas o que o motivou, aparentemente, foi o desejo de preservar a íntegra de seu legado literário pessoal.

07
maio
08

Paulo Leminski: o marginal dos marginais

Este sim foi um verdadeiro marginal. Dos poetas da geração 68, como ele mesmo se intitulou em uma espécie de manifesto na revista Pólo Inventiva em 1978, ninguém mais do que Paulo Leminski encarnou o que havia de realmente original nessa geração marcada pelo inconformismo e rebeldia: a incoerência. Dono de uma personalidade singular, o poeta curitibano era capaz de reunir num mesmo ser a figura de hippie, ex-seminarista, poeta, publicitário, judoca e haicaísta zen. Embora soe um tanto quanto paradoxal, a sua incoerência era o que havia de mais sensato nesse contexto histórico pós-68.

 

Uma de suas contradições, se é que assim a podemos considerar, era o fato de ser marginal e, curiosamente, possuidor de uma erudição como poucos em sua época. Por trás do linguajar coloquial e dos versos livres, fazia-se presente na poesia de Leminski um rigoroso trabalho com a linguagem, fruto de um conhecimento aprofundado de autores consagrados como James Joyce e Ovídio, e da amizade de longa data com intelectuais de primeira grandeza como Décio Pignatari e Haroldo de Campos. É sabido também que o poeta tinha familiaridade com línguas. Ele mesmo se orgulhava de ser um “bandido que sabia latim”.

 

Leminski, ou a “besta dos pinheirais”, como também foi alcunhado, não via incoerência alguma em ser marginal e concretista ao mesmo tempo. Se de um lado, os marginais buscavam a liberdade contra todo tipo de repressão, do outro, o Concretismo, com o seu arcabouço teórico rígido e inflexível, representava a alguns deles o que havia de pior: um verdadeiro AI-5 da literatura. Nesse cenário, a figura de Leminski surgiu como uma válvula que despressurizava o rigor do Concretismo ao mesmo tempo que inflava a poesia marginal com uma boa dose de lirismo e erudição. Nesse meio tempo, conseguiu ainda espaço para ser tropicalista na gélida e sóbria Curitiba.

 

É, contudo, no campo social onde Leminski guardava suas maiores contradições. Escreveu a biografia do revolucionário russo Trotski, envolveu-se com organizações de esquerda como a Libelu, Liberdade e Luta, mas ainda assim não se permitia fazer poesia social. A respeito dos poemas de colegas que versavam sobre “bóias-frias ou metalúrgicos do ABC”, costumava dizer que “a realidade objetiva é a prostituta mais barata no mercado de idéias”. No começo da década de 80, numa reunião de escritores alemães no Rio de Janeiro, chegou a acusar o poeta maranhense Ferreira Gullar de “oportunista” e “carreirista”. Nesse caso, Leminski concordava com Fidel Castro. Preferia “um bom poema romântico a um mau poema político”: o primeiro, pelo menos, não prestaria um desserviço à revolução. Em seus textos criativos, podemos encontrar muitas vezes uma metalinguagem daquilo que considerava a verdadeira poesia marginal.

 

[Marginal é quem escreve à margem,]

Marginal é quem escreve à margem

deixando branca a página

para que a paisagem passe

e deixe tudo claro à sua passagem.

 

Marginal, escrever na entrelinha,

sem nunca saber direito

quem veio primeiro,

o ovo ou a galinha.

 

Como o poeta Ademir Assunção afirma, Leminski fazia questão de “alterar o texto para bagunçar o contexto”. Um exemplo clássico disso é a paródia que fez do discurso nacionalista de Médici: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Leminski escreve: “ameixas / ame-as / ou deixe-as”. Ele consegue subverter o discurso militar ufanista somente alterando algumas palavras e, de quebra, se diverte com isso. Em tempos de chumbo, costumava dizer que “rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída”.

 

Outra contradição saltaria aos olhos do público quando o poeta decidiu conciliar a literatura com a profissão de publicitário. Em 1975, no lançamento de sua obra prima Catatau, Leminski valeu-se de um recurso de marketing: pousou nu, em posição de flor de lótus, para o cartaz promocional da obra. Décio Pignatari, também publicitário, qualificou Catatau como o primeiro livro que surgiu dentro de uma perspectiva inovadora de promoção e marketing. O escritor Jaques Brand, contudo, foi bastante crítico ao destacar o ego de Leminski nessa “jogada publicitária”. O poeta curitibano então responde: “o que irrita Brand é que usei técnicas da propaganda para lançar um livro de literatura. Como se a literatura – numa sociedade de mercado e de consumo – fosse algo de santo ou pátrio”.

 

Leminski viveu intensamente as contradições de sua época. Faleceu aos 44 anos de cirrose hepática como Fernando Pessoa, embora desejasse ter sido como Pound e Maiakovski, dois grandes poetas que não bebiam. Apesar de ser enquadrado por muitos nos apêndices ora do Concretismo, ora da poesia marginal e ora do Tropicalismo, conseguiu realizar uma façanha ainda maior, como poucos na história da literatura: ser maior que um simples emblema. Ser ele mesmo.

24
abr
08

O poeta severino: João Cabral de Mello Neto

Enquanto o clima esquentava no ano de 1968, a Academia Brasileira de Letras recebia mais um membro ilustre: João Cabral de Melo Neto.

 

Exatamente no calor de todos os acontecimentos e protestos, o poeta foi eleito no dia 15 de agosto e 68, mostrando que nem tudo estava perdido e que em meio ao caos, ainda havia esperança.

Entre os livros do escritor, talvez o mais conhecido seja “Morte e Vida Severina”, publicado em 1956, no qual João Cabral narra a história de uma família de retirantes, assolada pela pobreza e pela fome, em busca de uma vida melhor.

 

Na vida, João Cabral fez de tudo um pouco. Amante de futebol, foi campeão juvenil em Pernambuco, seu estado natal; também adorava a boemia e os amigos, com quem freqüentava bares e rodas de intelectuais. Foi embaixador e fez várias andanças pelo mundo a serviço do Itamaraty, mas nunca deixou de escrever e publicou livros durante quase toda sua vida.

 

Ele sofria com intensas dores de cabeça e dizia que a aspirina era sua fonte de inspiração para escrever. No entanto, descobriu que era a conseqüência de uma doença incurável, que o deixaria cego, e que acabou o levando para longe dos livros, para escrever em outro plano. Ela tirou de João Cabral a vontade de escrever e de falar, e de nós, o prazer de ler aquele que é um dos maiores escritores e poetas que conhecemos. Aos 79 anos, perdíamos João Cabral de Melo Neto.

 

Por ocasião da morte do poeta, Arnaldo Niskier disse em seu discurso:

 

“Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.”

 

Vida que foi para João Cabral uma bonita e ao mesmo tempo sofrida obra de engenharia poética, como demonstrou no seu inesquecível Morte e Vida Severina.

Aqui está o poeta João Cabral de Melo Neto, presente pela última vez na Academia Brasileira de Letras, de que foi, por 30 anos, uma das figuras fundamentais. Aos 79 anos, apaga-se a voz de significação universal, com a singularidade do seu verso, tantas vezes lembrado para a glória do Prêmio Nobel de Literatura.

Descanse em paz, poeta João. A sua presença jamais deixará de estar conosco. Teremos o consolo da sua poesia imortal.”

 




abril 2024
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